domingo, 7 de setembro de 2008

14.08.08

Acordamos ainda de noite e em menos de 1/2 h estamos na paragem de onde parte o colectivo para Carate: o ponto de entrada para o Corcovado.

O colectivo é efemismo para autocarro, pois trata-se de uma camioneta de transporte de animais, cuja única diferença é ter um banco corrido em cada lado. Arranca para uma viagem de 2.30 h pela estrada mais esburada onde já andámos.

À chegada já o sol vai alto (o que em linguagem tica se traduz por 8h e tal da manhã). No caminho, apercebemo-nos que deixámos todo o dinheiro nas mochilas grandes e só temos connosco uns quantos colones e outros tantos dólares (Claro que não nos lembrámos de que até na selva podemos precisar de dinheiro!). Concluímos que isso não vos vai impedir de arranjar um guia.
Chegadas a Carate começamos a perguntar e indicam-nos o Abraham (depois de nos terem dissuadido, e ainda bem, de arrancar sozinhas). Muito bem, queremos, seguido da explicação: "Só podemos é pagar em Puerto Jimenez. Sabe, é que esquecemo-nos de trazer dinheiro..." Mais uma vez levamos com o olhar estas-gajas-são-loucas. Nada que 2 dedos de conversa e 2 sorrisos pepsodent não resolvam!

Tudo tratado, arrancamos para a 1ª etapa: 3.5km pela praia, debaixo de um sol escaldante e carregadas até à estação Leona, onde nos espera o Abraham.

Chegamos tarde e ele avisa-nos logo que temos de nos despachar por causa da maré senão, "no hay paso". Está preocupado, especialmente com a travessia do Rio Grande.

Arrancamos. Passados uns metros, somos rodeados por um bando de macacos "cara-branca" (como dizia o guia), com um ar muito pouco amigável. Ia disparar umas fotos mas o ar calmo com que o Abraham diz: "Vêem como eles estão de boca aberta e com as patas ao lado do corpo? Isso é a posição de ataque.", dissuade-me.

Apressamos o passo. Durante horas atravessamos selva por senderos por vezes imperceptíveis ao olho destreinado (agradeço mentalmente ao tipo que me convenceu a trazer um guia). Vemos as 4 espécies de macacos a balouçarem-se nas copas das árvores: titi-titi, congo (uivador), aranha e os maus-em-posição-de-ataque; todas as espécies possíveis de pássaros, papa-formigas, um tapir enorme a alimentar-se perto da praia.

Quase como se fosse de propósito quando nos cansamos de subir e descer encostas enlameadas no meio da vegetação, o caminho passa a ser feito pela praia, com o mar ali a gozar-nos enquanto afundamos os ténis na areia escaldante, ao ponto de ansiarmos por bosque de novo, o que acontece, mais tarde ou mais cedo. A profusão de plantas e a sua variedade é incrível. Olho para cima, vejo uma cidade feita de árvores de 20, 30, 50 mts de altura, povoada de vida. Sinto-me uma outsider aqui. Tudo isto existe há milhares de anos e assim continuará (esperemos) depois de eu morrer, sou só uma passageira temporária e não pertenço aqui (esta sensação de que os humanos não pertencem aqui acompanha-me todo o percurso). Sinto-me constantemente observada, não tenho dúvidas de que a minha presença (quem sabe invasão) é notada. No entanto, tudo disso não invalida o facto de me sentir de certa maneira em casa, sentir que não preciso de nada para além das poucas coisas que tenho comigo.

À frente, a puxar por nós está o Abraham, depois a G., no fim, mais para trás, eu. Penso nos jogos olímpicos que adoro e dos quais ainda não vi nada, penso em como eu daria uma uma péssima corredora de 100 mts e uma atleta de maratona razoável. Prefiro manter-me um pouco distanciada e ao meu próprio ritmo, perdida nos meus pensamentos, sentindo que ainda tenho em mim energia para continuar horas e horas.

A certa altura sinto um restolhar rasteiro imediatamente atrás de mim à direita. Não eram concerteza macacos (no chão?), papa-formigas (andam sempre em grupo, tal como os javalis). Não, este era um animal solitário e grande. Deliro com a possibilidade um jaguar ou puma - os mais desejados e, obviamente, mais difíceis de avistar. Fiz um sinal ao guia a dizer que ia voltar para trás. Acompanharam-me. Esperámos, olhámos, sustivémos respirações... nada. Tudo (incluíndo estranhamente os animais) em silêncio.Resignados, retomamos o caminho e estacamos de seguida, o trilho cortado pela passagem de um veado. O Abraham confirma que o barulho que eu ouvi era seria um puma desceu das terras mais elevadas onde habitualmente andam, para se alimentar. Quero acreditar que sim. Penso nas inúmeras possibilidades se voltasse 5 min atrás no tempo e tivesse o poder de alterar o rumo dos acontecimentos...

O nosso guia Abraham, nascido e criado em Carate, tico até ao tutano, 34 anos, corte de cabelo a fazer lembrar o mau gosto que assolou as camadas futebolísticas portuguesas na década de 90, leva uma mochila pequena, 1/2lt de água, uma t-shirt e calções, uma galochas com meias até ao joelho (que dão 10 a zero aos nossos kits ténis + havaianas para travessia de rios), move-se com a destreza e facilidade que só vêm com a intimidade. Está no seu elemento. Foi caçador furtivo vários anos aqui no parque, antes de, há 12 anos (após uma pequena incursão no tráfico de drogas em Puerto Jimenez) ter dado uma volta completa na sua vida: deixou de fumar, de beber, de caçar e tornou-se guia.

O caminho torna-se cada vez mais penoso até porque, por causa das marés temos de subir de novo para dentro do bosque, pois a passagem pela praia está cortada. Finalmente o sendero desemboca na margem de 1 rio: o rio Grande. O nosso ponto de referência para "já estamos perto". Novamente o ritual de descalçar, tirar as meias, arregaçar calças, calçar havaianas. Novamente olho com inveja para as galochas do Abraham que espera por nós, pacientemente, entretendo-se a falar com os animais. É impressionante! Consegue imitar os sons de todos os animais e eles respondem-lhe criando um diálogo caricato.

Cerca de 50 mts para a esquerda a passagem é bem mais estreita (tenho de lhe perguntar porque não atravessamos aí). Rio atravessado, iniciamos a etapa final. A certa altura, o Abraham pára-nos. Sentiu o cheiro dos chanchos (javalis, segundo percebi) que devem andar por ali. São animais agressivos, que não se coíbem de atacar humanos e andam em grupos de 20 ou mais. Prosseguimos com a cautela que o terreno lamacento nos permite. Os pés afundam-se a cada passo na lama. Passados uns metros, ouvimos grunhidos ao nosso lado o que leva o Abraham a proferir um lacónico "Corram." e começa a correr. Ora, se o meu guia corre, quem sou eu para não o fazer!
Passado um bom bocado e ainda com os corações aos saltos, começamos a vislumbrar uma clareira relvada. Ao chegar, olho para a esquerda e vejo uma extensão de relva até ao mar - é a pista de aterragem para quem prefere vir de avião até aqui. Olho para a direita e, perfeitamente integrada no ambiente circundante, ergue-se a estação Sirena.
Várias estruturas madeira escura (tipo cabanas em ponto grande), ligadas entre si por passadeiras a 1 metro do chão (por causa das cobras?). Tiramos a fotografia da vitória e dirigimo-nos à zona das tendas para montar a nossa o quanto antes. Já lá estão algumas. Ficamos impressionadas com o conforto. Íamos preparadas para montar a tenda no chão e, ao invés, temos uma estrutura de madeira e até daqueles colchões de ginásio - nem precisamos de usar os prumos para fixar a tenda. Tenda já montada, olhamos à volta: as tendas, mochilas dos outros estão todas arrumadas. Olhamos para o nosso canto: o chavasco de roupas, comidas, garrafas de água, etc. estende-se por 10 m2. Partimo-nos a rir antes de arrumar tudo.
Agarro no sabonete e no pareo e arrasto-me dorida para o banho, enquanto ainda há luz. É uma experiência mística de tão revigorante! O frio da água que lava o sal, a areia, a terra e as feridas lava-me também a alma (tal como me disseram que faria).
Enquanto estamos no banho toca a sirene para o jantar. São 5.30h. É que quando a luz do sol se acaba, acaba-se a vida. Pelo menos a humana.
Despacho-me primeiro que a G. e arrasto-me até ao alpendre na minha parte preferida do dia: aquela em que a silhueta escura das árvores se recorta contra o céu azulado já sem réstia de sol. Enrolo 1 cigarro e penso no dia de hoje: nunca fui mãe, mas é assim que eu imagino que deve ser um parto. Horas de sofrimento que simultaneamente são uma experiência única e sentida a cada instante, para chegar ao objectivo que, de tão completo, faz imediatamente esquecer tudo o que se passou de mau, ficando só lembranças boas.
O facto de estar tudo a jantar e a G. no banho, concede-me o previlégio de estar estes 10 min. só com a selva. Vejo macacos, araras, pirilampos. Delicio-me. O Abraham vem ter ao alpendre e trocamos umas palavras sobre o dia. Conta-me que o seu record pessoal a fazer o caminho que acabámos de fazer em 6.30h, é 2.30h. Não percebo como. Pergunto-lhe pelas histórias mais assustadoras com animais e se não se cansa da selva. Pergunto-lhe pela família, se é casado. Responde triste que não é casado, mas a sua mulher, mãe dos seus 2 filhos, fugiu há 5 meses com outro, terminando com um sentido "la quiero mucho". A justificação foi ele nunca estar em casa. Este sítio deve ter o condão de tornar as pessoas vulneráveis. Não sei o que lhe dizer. Digo-lhe que se ela se foi embora é porque não era a mulher para ele. Esboça um sorriso e vai-se embora.
A G. acabou o banho e agora vamos jantar. À tuga, claro! Já todos jantaram e nós a fazer sandes de queijo e goiabada. Depois, estamos finalmente em condições de socializar um pouco. Ao nosso lado, sentados em círculo 3 franceses (Nico, Henrique e não me lembro do nome do 3º) e 2 americanos (Daniel e Michael) trocam experiências do dia. Os franceses viram um crocodilo no rio Grande. Penso que deve ser por isso que não atravessámos na parte mais estreita, deve ser onde costumam caçar. Tem lógica, mais potenciais presas por m2! Os americanos dizem que são de N.Y. e o objectivo deles é aplicar o street wise na selva. Os princípios são os mesmos, dizem: "Don't look them in the eyes!" Chegaram na véspera e hoje decidiram alugar um caiaque e (contra as indicações) subir o rio à procura dos crocodilos. Não viram nenhum mas a certa altura foram ultrapassados por um tubarão que entrou com a maré cheia. Amanhã vão partir cedo, para apanharem a selva de noite. Convidam a juntar-nos. Adiamos a resposta. Passa pouco das 8h da noite, mas sentimos que é tarde. Recolhemos às tendas.
A chuva de fim de tarde tornou-se agora um dilúvio inacreditável acompanhado de relâmpagos e trovões. Voltamos a sentir-nos miúdas e contamos os segundos entre cada um para saber a que distância está: 7km aproximadamente. Nunca ouvi chuva assim. Já não se ouvem animais. Só chuva! Intensa, poderosa, espessa. Viro-me de barriga para cima e fixo os olhos no que suponho ser o tecto. Sinto-me completamente esmagada pela Natureza. Adormeço com este pensamento.
A entrada no Paraíso


Papa-formigas








Uma árvore com a alcunha La puerta de la iglesia









A luta contra relógio para que haja paso






Um rasto de tartaruga





um tapir (ó animal estranho!)
uma cidade feita de árvores
O "aeroporto"
a desejada Sirena




A chuva

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