segunda-feira, 16 de maio de 2011

Para mim, só se enganou no género do narrador

Li este texto na revista 365. Que bom texto. Que boa escrita. Há muito tempo que não lia algo que me desse tanto prazer. Daquele prazer que não queremos que acabe, daquele prazer que me faz voltar ao início do texto após ler umas linhas só para o prazer demorar mais. Não resisto a replicá-lo aqui, com todos os créditos. É de Miguel Marques e chama-se Cair.

 Um dia destes encontro-te e estás mais velha. Um dia destes cruzo-me contigo na rua, numa esquina, no café, e estás feliz, mais feliz, insuportavelmente feliz, e não consigo evitar desviar o meu olhar do teu. Um dia destes vejo alguém que me pareces tu e afinal és mesmo tu e faço de conta que não te vi e me pareceste outra pessoa. Um dia destes dou de caras contigo e a tua cara é a mesma de há anos, só que sem ter havido eu e sem ter havido anos. Um dia destes esbarro connosco no passeio e mal nos reconheço à primeira, de tão apressados que vamos de encontro aos nossos encontros. Um dia destes dou-te um encontrão sem querer e descubro que um encontrão é apenas um encontro vítima do sufixo aumentativo. Um dia destes distingo um vulto cheio de brancas no cabelo e rugas por trás dos óculos, apesar de conservar o teu anel preto de cabelo e o preto das íris sem aros dos teus olhos. Um dia destes arrependo-me de não ter dito nada nas alturas em que não havia nada a dizer. Um dia destes não dizemos nada um ao outro, uma vez que nada temos em comum a não ser o facto de sermos mudos e graúdos. Um dia destes não nos falamos e continuamos sem nos falarmos apesar de dizermos tudo aquilo que nos vem e nos acode e nos sacode a cabeça. Um dia destes, vai-se a ver e nem tantos, paro de contar os dias desde o dia em que te vi e vemo-nos ambos sem jeito, porque doutro jeito não faz sentido vermo-nos pelos intervalos da chuva. Um dia destes pode ser que chova e vá a correr atrás de ti, que aproveite e peça boleia à tua sobrinha desengonçada. Um dia destes chocamos os dois no trânsito e noto que os teus olhos tomaram forma de semáforo e há um amarelo intermitente que não me enxerga como dantes. Um dia destes ignoro o vermelho e faço-me de despistado só para sentir o impacto de me deixar atropelar por ti. Um dia destes enterro a cabeça nos pés e confundo-me com as pedritas de gravilha que me hão-de auxiliar a atravessar a zebra até ao outro lado da estrada. Um dia destes somos perfeitos desconhecidos sem passado nenhum, dois peões de passagem numa passagem para peões, com os telemóveis encostados ao ouvido e ao embaraço. Um dia destes passo por ti e és uma perfeita desconhecida e eu um imperfeito conhecido, à cata nos bolsos de um buraco onde me esconder. Um dia destes vamos um contra o outro e pedimos desculpas enquanto apanhamos o que caiu ao chão, desapercebidos de que o que caiu não saiu de dentro dos nossos bolsos. Um dia destes gritamos veja se tem cuidado, sua besta, parece que vai com os cornos na lua, e nem nos damos conta de que já gritámos coisas piores e que a lua, afinal, pouco tem a ver com dores de corno. Um dia destes tens tudo aquilo com que sonhaste. Casa, família, filhos, carreira, um homem à séria, uma turma de crianças enfileiradas à tua ordem, e eu continuo um pirralho borrado de medo a fugir do alcance da vista de quem quer divisar de perto. Um dia destes capto-te de longe, por detrás da vergonha, e tento gravar o teu sorriso, a maneira como ris com olhos em vez de boca, registar para memória futura a facilidade com que desapareces, com que somes de cena, com que viras costas ao mundo. Um dia destes ainda me distraio e escrevo que o amor são umas costas voltadas a irem-se embora e a afastarem-se de mim para sempre. Um dia destes, viro-me costas, sumo de cena e desapareço como nos filmes, ciente de que é virado de frente que desapareço contigo para o outro lado da página. Um dia destes ganho a certeza de que sou um transeunte igual aos outros, anódino e anónimo, enquanto te observo a uma distância segura, no fundo inseguro das minhas certezas. Um dia destes miro-te de viés sem to dar a entender e vejo que és mesmo tu sem o seres, e penso que houve um dia em que foste mais tu  do que o és neste momento, apesar de teres sido sempre tu e tu em mim seres uma espécie de eu sem ninguém. Um dia destes passamos resvés um ao outro e não nos tocamos nem permitimos que o facto de não nos tocarmos nos toque sobremaneira. Um dia destes, talvez nunca, digo-te do meu silêncio e do desajuste das palavras. Um dia destes, se calhar, ainda nos vemos de noite, uma noite destas, numa ruazinha escura e demasiado estreita para que possamos desviar-nos a tempo. Um dia destes, é natural, se alguém me vier perguntar, minto como se não fosse nada comigo e respondo que nunca mais te vi.


E se alguém quiser saber, não. Nunca mais o vi.

3 comentários:

Anónimo disse...

lindo!

Anónimo disse...

Avança ou vais deixar a tua felicidade não mãos de outra pessoa?

Com a felicidade não se brinca.

ManelTV disse...

Excelente texto. Percebo porque te tocou. A mim também não me deixou indiferente ou se calhar deixou. Já não me lembro. Não sou de revisitar sentimentos mas sim coisas e pessoas. Excelente texto. Tenho dito. Beijinhos Manel